Na porta do banco eu ouvia o ânimo do casal à frente. O carnaval tá aí, vou me acabar na avenida, dizia ela com um sorriso de orelha a orelha, que mexeu com os demais. Se acabar na avenida virou frase feita das últimas décadas. Serve tanto para quem, embriagado, atravessa avenida sem tomar os devidos cuidados, quanto para alguém que, sóbrio, se põe em pé num salto alto de uns 15 centímetros (no mínimo) e se arrisca a sambar e berrar uma letra-melodia por hora e meia sob sol ou chuva para, após a imprudência, torcer para que sua agremiação seja declarada a melhor de todas.
E a mulher, entusiasmada que só ela naquela fila, disparava aos mil cantos o quanto gostava de todo aquele espetáculo. Adoro, frisava bem, vestir meu salto alto, minha mini fantasia e sentir o samba sacudir o corpo. O namorado-marido, um marmanjo barbudo de mais de um e oitenta, sorria orgulhoso da companheira, embora não abrisse a boca para se pronunciar.
O velhinho encostado na pilastra próxima à fila, perguntou animado como fazia pra sair na referida escola. Tô véio, mas ainda tenho samba no pé, afirmou categórico à moça, que riu um deboche meio sem querer. Ô vovô, não te mete não que isso é pra gente que sabe, estreou o brutamonte ao lado da moça.
Pois saiba que no meu tempo o carnaval se escrevia com letra maiúscula, sabe por quê? Perguntou o velhinho, arriscando um meio passo torto. Porque foi muito antes da reforma ortográfica, vovô! Respondeu a moça, repetindo o passo tentado pelo velho e sendo seguida pelos aplausos acalourados do acompanhante.
Não. Carnaval era com maiúscula porque era a mais legítima manifestação da cultura brasileira, uma cultura que teve origem a partir da mistura de diversas etnias, dentre elas a africana. E por ser esta a maior manifestação cultural brasileira, escrevíamos o Carnaval de forma tão respeitosa quanto o Natal. Mas hoje, o duplo sentido e o erotismo exacerbado contaminou de tal modo essa manifestação que o carnaval já não se faz mais digno, servindo apenas para se acabar em saltos altos e em nudezes. É pena que a alegria de que tanto se fala na TV, que também mostra o carnaval de forma viciada e atendendo a interesses econômicos e mesquinhos, não seja mais aquela de antes da reforma ortográfica, a qual fazia brotar o riso sem que lágrima alguma se fizesse necessária ou que se precisasse acabar-se numa avenida.
O público aplaudiu. A moça se entristeceu. O rapaz abaixou a cabeça. E o velhinho lamentou estar certo.
Engraçado é perceber que os risos, sorrisos e fantasias já não são acompanhadas por alegria descompromissada, mas de termos que indicam o fim, como "se acabar na avenida" ou "sambar até o dia clarear" ou mesmo "dar o sangue por esta ou aquela agremiação". A pergunta que fica é: "pra quê?"
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