segunda-feira, 15 de março de 2010

Os superpoderes da infância

- Eu consigo mudar minha visão, tia - orgulhava-se a criaturinha de seis anos, com a mochila nas costas, de uniforme e banho tomado.

Com o cabelinho bem penteado, se encontrava pronto para ir à escola, mas a mãe, professora, tivera que passar em seu trabalho antes de levá-lo ao jardim da infância. E por isso estava lá, fazendo hora na sala dos professores da escola onde estou lecionando temporariamente.

- E como é que é isso? - Perguntou a professora que aguardava o sinal da primeira aula.
- Por exemplo: quando tá chovendo, eu consigo mudar minha visão para ver cada gotinha caindo!
- Nossa... mas então você é quase um super-herói - brincou a professora, com a incredulidade adulta de sempre.
- Sou... mas antes eu não era. Quando eu tinha quatro anos, eu não conseguia fazer isso. Agora, faço a hora que eu quiser!
- Para de atrapalhar a tia. Senta e sossega! - Ordenou a mãe.
- Não, pode deixar... ele estava me falando dos superpoderes dele?
- Que superpoderes?
- Que eu consigo mudar minha visão para ver o que eu bem entender! - Explicou uma vez mais o menino.
- E como é que é isso? - Questionou a mãe, como se desconhecesse a imaginação do pequeno.
- Eu já te falei, mas você não presta atenção. Quando tá chovendo, eu mudo minha visão e consigo ver todos os pinguinhos caindo. E antes eu não conseguia.
- Ah é! Eu esqueci que eu tenho um super-herói em casa - debochou a mãe, rindo junto com a amiga professora. - Mas, agora o super-herói tem que estudar. Senta e sossega pelo amor de Deus, enquanto eu acabo de ver meu horário aqui.

A amiga sai da sala e a mãe senta à mesa observando uns documentos. O pequeno pega um papel para testar se a visão também era capaz de atravessá-lo, mas é contido pela mãe, que lhe tasca um tapa na bunda e manda mais uma vez que se sente.

- Dá para você fazer o favor de ficar sentado e não ficar pegando as coisas que não são suas?
- Mas é que a minha visão...
- E para de ficar inventando essas histórias! Já cansou esse papo!

O menino se cala. Depois de certo tempo, a mãe se levanta, agarra a mão do filho e lhe puxa em direção à porta.

- Vamos! - Grita a mãe, percebendo certa resistência do filho.
- Se você acreditasse em mim, eu te levava voando!
- Deixa de besteira moleque!

Essa é a magia da infância. Um mundo no qual descobrir que é capaz de mudar o foco de sua retina ocular, para visualizar objetos próximos e distantes, tem muito mais a ver com superpoderes do que com biologia! E não duvido que se não fosse tamanha descrença da mãe, os dois teriam saído dali voando! Eu, pelo menos, saí!

quinta-feira, 11 de março de 2010

Apertem os cintos... minha psicóloga sumiu!

Antes de tudo, faz-se necessário uma breve explicação sobre o título acima. Minha psicóloga não sumiu, apenas foi forçada por motivos 'horarísticos agenda-consultoriais' a dar um tempo nas minhas sessões, até que haja um horário que se adeque ao meu louco e último estilo de vida adotado há algumas semanas. Virei professor, como todos já sabem, ou pelo menos todos que costumam dar uma passadinha por aqui vez em quando, e a rotina não tem sido nada fácil. Creio que seja apenas uma questão de as coisas se ajeitarem, porque se não for, terei que vender caneta no semáforo.
Bom, voltando ao assunto de minha psicóloga, a falta de uma boa conversa com ela tem sido imensa, ainda mais com os episódios que tenho vivenciado todos os dias nas salas de aula do estado, sobretudo o de hoje, o qual passo a narrá-lo nas linhas abaixo.

No final da semana passada, alguns professores da escola estadual do Jardim Tulipas, onde até então lecionava no período da manhã, aderiram à paralisação promovida pela Apeoesp (Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo), e eu tive que procurar outra escola que tivesse maior número de professores trabalhando, já que aulas vagas de professor que está em greve não podem ser dadas para um professor substituto como eu. Aliás, sou habilitado a pegar aulas de português, mas como não peguei nenhuma aula fixa, abri a possibilidade de ficar como substituto de qualquer matéria, menos aulas práticas de educação física.

Pois ontem à tarde, ao chegar na nova escola, localizada na Vila Arens, fiquei sabendo que substituiria a professora da dita disciplina, mas que teria que ocupá-los em sala de aula. Perguntinha básica ao leitor: como é que se convence um bando de moleques de sétima série a ficar quieto e sentado dentro de uma sala quente quando era para terem aula na quadra poliesportiva que estava bem mais fresca do que a classe? Resposta óbvia: não há essa possibilidade!

- Professor, nós vamos para a quadra?
- Não - cortei. - Meu nome é Gustavo e eu irei substituir a professora de educação física hoje porque ela faltou. Mas, como não sou professor específico dessa área, estou proibido de levá-los até a quadra. Assim, posso tanto passar alguma coisa na lousa, como não passar, desde que fiquem quietos.
- Ah... por que não? - Reclama um gordinho.
- Eu adoraria ir, mas a coordenadora me proibiu.
- É só dar uma bola pra gente que a gente fica jogando e o senhor não precisa fazer nada - diz um outro, sentado à frente do gordinho.
- Como é que a gente vai ficar aqui? - Perguntou um outro aluno, de boné, óculos escuros, com a camiseta do Corinthians ao invés da do uniforme e já ligando o celular.
- Gente, vamos entender uma coisa: não podemos ir para a quadra e está acabado. O que a gente pode fazer e ficar sem fazer muita coisa.
- Ah, não vou fazer bosta nenhuma também! - Desafiou em tom bravo de voz o gordinho, já envermelhando a face, como se quisésse partir para a agressão.
- Não faz. Por mim... - retruquei, mostrando que não me atingiria tal ameaça.
- Vou dormir! - Ameaça outro aluno à minha esquerda, sentado na primeira carteira da fila.
- Dorme! Só não incomode aqueles que querem prestar atenção.
- Pode dormir? - Questiona outro aluno, de cabelinho e olhos claros.
- Pode!
- Vou dormir em cima das carteiras então - desafiou, juntando seis carteiras e utilizando a mochila como travesseiro, como forma de mostrar aos demais o quão era capaz de afrontar o professor.
- Você vai ficar satisfeito com isso? Vai realizar o seu sonho? Então dorme! - Permiti, desarmando o impertinente aluno. - Bom gente, quem aqui é corinthiano? - Perguntei como forma de melhorar o clima que já se tornava tenso.
Uns dez alunos pularam da carteira, dentre eles o de boné, que esticava o destintivo alvi-negro (urgh!) do peito como se quisésse fazer-me engolir, ainda mais depois que revelei minhas preferências palestrinas. Aí o clima desandou de vez. Até os dois alunos que haviam pedido para dormir, agora faziam questão de proferir insultos futebolísticos ao Palmeiras como forma de testarem-me a paciência.

Foi então que o corinthiano (ê raça!) aumentou o volume do funk que tocava em seu celular a um nível que obrigava a todos a escutar tal barulho. Não contente, começou a dançar de costas para mim e ignorando meus apelos para que abaixasse o volume.
- Não ligo de vocês ouvirem música (o que é errado, eu sei, mas queria me mostrar, assim como havia feito as últimas semanas, um professor bacana), mas tem que ser em volume baixo a fim de que os outros não ouçam, só vocês - avisei, passando a pedir num tom mais elevado de voz (o que já me irritou imensamente, uma vez que eu não aceito que professor tenha que berrar em sala).
- Se não baixar o volume, vou tomar o celular! - Ameacei.
- No meu celular ninguém rela a mão! - zombou o de boné.
- O que você falou aí? - Perguntei, impondo-me como havia me aconselhado o vice-diretor.
- No meu celular ninguém rela a mão - disse, evitando olhar para mim.
- Experimenta me desafiar, experimenta deixar o som alto para ver se não tiro de você esse celular! Fica esperto, moleque! É melhor ficar na tua!
Fez que não ouviu e continuou a mexer no celular. Comecei a passar um texto na lousa sobre o atletismo e ameacei que iria avisar a professora para que ela desse visto nos cadernos e levasse em conta o texto no caderno para a elaboração da nota. Com a lousa quase cheia, começaram os pedidos para ir ao banheiro e beber água. Ressaltei que deixaria numa boa, mas que houvesse colaboração da parte deles no que dizia respeito ao barulho. Nesse momento, uma menina sentada ao fundo atira-me nas fuças a frustração de todos os professores que ainda pensam em ensinar e colocaborar com o futuro da Pátria:
- Psor, não sei porque o senhor tá escrevendo tanto... ninguém está copiando... ninguém está nem aí pra essa aula.
Olhei em volta e mesmo aqueles que, num primeiro momento, se mostraram mais interessados, ignoravam o texto à giz na lousa. Já suando, com as mãos, braços, camisa e rosto cheios de pó de giz, observei um grupinho composto por vários alunos, dentre os quais os dois que queriam dormir e o do boné, dançando ciranda-cirandinha e olhando-me com um sorriso largo no rosto como quem dizia: 'está vendo, seu bosta! Nós é quem mandamos aqui. Professor não é nada. Aluno é tudo!'
Parei por um instante, respirei fundo, limpei o riacho de suor que embicava na fronte completando a meleca devido ao giz, e pensei nas piores coisas que já havia enfrentado no jornalismo e em toda a minha vida... E decidi contrariá-los!
Pedi para que o aluno da frente guardasse meus papéis por um instante e saí da classe. Fui à diretoria.
- Pois não, professor? - Perguntou-me o diretor.
- Os alunos da sétima série estão inconformados por não terem aula de educação física na quadra e já estão começando a me desacatar pessoalmente. E isso eu não vou permitir! - Frisei.
- Se algum aluno te desacatar, pode mandá-lo para cá, que eu o enquadro.
- Mas e se eu mandá-lo e ele ficar vagando pelo pátio ao invés de vir até aqui?
Subi de volta para a sala. No caminho, pedi ajuda a uma das inspetoras, que me atendeu prontamente. Abrimos a porta. Todos sentados, comportados e em silêncio. O moleque que havia juntado as carteiras para dormir se encontrava com a coluna reta e com os olhos apreensivos, tendo à sua volta, todas as carteiras em seus lugares. Uma belezinha... aquelas coisas que te fazem crer ainda mais que democracia só serve mesmo para maiores de 21 anos e que nessa fase, o que funciona mesmo é o autoritário-terrorismo, ou seja, o respeito imposto pelo medo.
- Qual deles, professor? - Perguntou-me a inspetora, com voz e cara bravos, como um cão a rosnar para intrusos.
- Esse aqui! - Apontei o dedo para o corinthiano de boné. - E esse aqui! - Indiquei o de cabelo claro que havia desistido de dormir nas carteiras.
- Bóra! - Ordenou aos dois ao mesmo tempo em que gesticulava as mãos abruptamente em movimentos de 'vamos'. - Algum mais, professor? - Questionou-me.
Olhei por uns 10 segundos as caras deles. Todas estavam abatidas, com o medo saindo pelos olhos. Pensei em mandar mais uns quatro, mas decidi usar o fato para impôr respeito.
- Por enquanto não, muito obrigado!
- Se precisar de mim de novo, é só chamar, professor! - Ofereceu-me.
- Muito obrigado.
Saiu levando os dois. Ao fechar a porta, tive a atenção e o interesse de todos, perguntando-me sobre palavras contidas no texto que se encontravam meio apagadas na lousa. Aproveitei para demonstrar o quanto eles haviam 'pisado na bola' comigo, e justo em uma aula de educação física! Mas, agora, pensando em tudo, acho que o culpado disso tudo é a sociedade brasileira... mas isso é mote para um novo post, num outro dia. E então... o sinal bateu... e eu fui embora, mas não sem antes ouvir, ao longe, o grito de um dos punidos:
- Até que enfim!
- Até que enfim digo eu, seu merda! - desabafei baixinho com a caixa de giz. - Ufa!

segunda-feira, 8 de março de 2010

Tempo, tempo, tempo, mano velho...

Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,

Depois da Luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.

Porém se acaba o Sol, por que nascia?
Se formosa a Luz é, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?

Mas no Sol, e na Luz, falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.

Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância.

(Gregório de Matos)


A verdade é relativa, disso eu sei. Mas e a relatividade? Essa será verdadeira? O papo é meio louco, eu sei, mas às vezes, e só às vezes mesmo, fico pensando se o tempo que passa hoje servirá como referência para o que há de passar amanhã.

Descobri no final da semana passada, que não gosto de sentir a presença do passado. É verdade, não me cai bem no estômago sentir-me em contato com o que já se foi. E isso não quer dizer que eu não goste de relembrar fatos e rever fotos, aliás, faço isso tão bem quanto a memória e o tempo me permitem. O que eu, de fato, não suporto é sentir que onde havia vida e alegria, hoje só se pode sentir o cheiro da saudade, a triste visão do 'naquela época', uma espécie de fantasma que costuma assombrar a casa de minha avó, onde morei desde meu nascimento até meus 27 anos, onde por mais que tenha tido uma infância razoavelmente feliz, nunca me senti em casa.

Em alguns domingos, quando a patota de tias e primos resolvem se juntar na casa da vó, que já deixou a realidade contemporânea para viver aquela uma remota, na qual os filhos ainda são pequenos e o marido ainda chega do trabalho ao meio-dia para almoçar, a sensação de passado me bate violentamente. E eu apanho mais que qualquer um, mais que qualquer primo ou mesmo qualquer tio, os quais embora tenham crescido ali, não têm sequer a décima parte do total de lembranças de alegrias e sofrimentos que eu tenho, e que ainda hoje, se acumulam latente em minha memória.

Em cada cantinho daquela casa há uma história minha, e em cada metro das calçadas daquela rua, há uma aventura e uma dor vivida, e em cada esquina daquele bairro, há uma desaventurança e um brilho nos olhos. Como é triste sentir que a história daquele lugar já foi escrita e que, a partir de agora, caso venham outras histórias não serão senão histórias de outras pessoas, outras circunstâncias, outros fôlegos e outros sopros de vida!