quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Penso, logo existo!

- E depois, Marlena, o que acontece? - resmungava o velho Zé, sentado como de costume em sua cadeira de balanço, que há muitos anos já não recebia uma boa balançada. Na varanda, apreciava as poucas cenas de ação na vizinhança. Sentado, levava o cobertorzinho xadrez no colo e uma touca cinza na cabeça, gentilmente ajeitada por Marlena, a empregada meio enfermeira contratada especialmente pelos cinco filhos do Zé, para acompanhá-lo durante o dia.
- Diacho, você não responde mesmo, né Marlena? Inté parece que tá de birra comigo. Justo eu que te acho tão formosa. Ah, se eu tivesse um problema a menos de saúde, só um que fosse. Não precisava nem ser mais jovem. E você ia ver uma coisa. Mas agora já não sei mais o que esperar. Diacho, Marlena, o que acontece agora? Anda mulher, me arresponde!  - exigia o velho, observando um passarinho que bicava um brotinho de grama na soleira da varanda.
Marlena passou uma vez mais por Zé e sentou-se ao lado. Com um tricozinho suado embaixo do braço, já encardido de teimosia em não acabá-lo, ela laçou dois pontos, depois fez meia, e voltou aos dois pontos e quando ia para a meia lembrou-se da regra básica que aprendera com a mãe: um ponto e uma meia para fazer um cachecol bonito. Desfez a carreira equivocada, demonstrando impaciência.
- Quê foi, Marlena? Por que essa gastura toda? Sente mais perto de mim e aproveite para me coçar as costas - pediu o velho, mesmo sem esperanças de ser atendido. - Ô mulher, faça isso comigo não! Já são dois anos nesse silêncio. Tá parecendo que é casada comigo. Nem minha véia ficava tão fria assim.
Marlena se levantou, passou por trás do Zé e deu-lhe um empurrão que até a cadeira de balanço se assustou, fazendo questão de ranger toda a sonoridade de sua madeira carcomida.
- Assim é que é, Marlena! Eu sei que você me destrata, mas gosta do véio, né? Mas, me diga mulher, o que vem depois? Será algo tão ruim? Ou será algo tão bom?
O cachorro do vizinho latiu para o carteiro, que insistia em colocar a correspondência na caixinha de cartas.
- Cachorro burro, cala a boca! Onde já se viu, passar anos latindo para alguém que já provou ser de confiança? Se ele quisesse fazer mal já teria feito, cachorro cretino. Só se você late porque sabe que eu não gosto. Vou começar a prestar atenção em você, se for isso, te dou um chute no focinho na próxima vez que passar em frente ao seu portão. Nem linguiça você vai conseguir cheirar depois disso! Tá avisado!
Marlena aproximou-se do Zé, retirou a cobertor, a touca e se abaixou. Com as mãos, armou as rodinhas da cadeira de balanço e empurrou-o de volta ao quarto.
- Você me conhece mesmo, Marlena. Estava cansado de ficar na varanda. Devem ser umas seis horas da tarde. Já está esfriando. E hoje tem aquele jogão de futebol na TV. Mas, Marlena, você passou o dia todo sem me responder: o que vem agora, depois de tudo?
Com braços fortes, Marlena colocou Zé na cama, cobriu-o novamente, deu-lhe um beijo na testa de boa noite, fechou a porta do quarto deixando-o no completo escuro e saiu.
- Sabe de uma coisa? Acho que vou dormir ao invés de assistir ao jogo. Amanhã tenho muito o que pensar... e muito o que esperar - riu-se Zé, vítima de acidente vascular cerebral há dois anos e em estado vegetativo desde então.

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